Criminalista Evandro Lins
e Silva completaria 100 anos
Por Marília Scriboni
Como o próprio
criminalista Evandro Lins e Silva disse, ao tomar posse na Academia
Brasileira de Letras em 1998, aquela seria a quarta veste talar que
usaria na vida. Até então, ele contava 88 anos de idade e três outras
indumentárias: a beca de advogado, a beca de procurador-geral da República e a
toga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Nesta quarta-feira (18/01/2012),
ele completaria 100 anos.
Na
academia, ele foi o quinto ocupante da cadeira número 1.
Apesar disso, não escreveu uma obra estritamente literária sequer. "O
estilo forense, normalmente, não seduz; é produzido, em geral, de modo tosco,
rotineiro, cheio de lugares-comuns, fórmulas repetitivas, sem nenhum
encanto", declarou, na posse na ABL.
Bem antes disso, nos quase seis anos em que foi ministro do Supremo, de
setembro de 1963 a janeiro de 1969, proferiu votos em mais de cinco mil
processos — alguns deles chegaram a ser publicados na Revista Trimestral de
Jurisprudência do STF. Participou do julgamento de mais de uma centena de
presos políticos, como dos intelectuais Caio Prado Júnior e Ênio Silveira.
Nesse período, concedeu Habeas Corpus que não agradaram os militares.
Na década de 1940, em pleno Estado Novo, também tomou atitudes contrárias ao
governo. Defendeu mais de mil presos políticos gratuitamente, afirmando-se,
nesse momento, como advogado. Ele foi, ainda, um dos fundadores do Partido
Socialista Brasileiro, em 1947, ao lado de João Mangabeira, Hermes Lima,
Domingos Velasco, Alceu Marinho Rego, Rubem Braga e Joel Silveira. No arquivo
do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924, revelado
mais tarde, ele foi apontado como militante comunista.
"Se esse é o serviço secreto brasileiro, ele é muito pouco
eficiente", declarou, quando soube do material, em 2000. "E
depois é falso. Não é verdade. Eu jamais pertenci ao Partido Comunista",
contou, lendo o documento, "jamais liderei grupos de assessores
esquerdistas. Eu era chefe da Casa Civil do presidente João Goulart".
Saiu do Supremo forçado, cassado pelo Ato Institucional 5, de 1968.
Definitivamente, ele não coaduna com o pensamento dos novos líderes. Assim como
ele e com ele, também se aposentaram os ministros Victor Nunes Leal e Hermes
Lima. Aposentado sem querer, o piauiense foi trabalhar, primeiro, com o
civilista Nelson Motta, e, por volta de 1974, com o sobrinho, o também
criminalista Técio Lins e Silva.
"Aqui ele advogou até morrer, com 91 anos", conta Técio. "Vinha
gente do Brasil todo procurando por ele, pedindo conselhos. Ele gostava de ser
procurado pelos colegas e se entusiasmava com essa abordagem. Tratava os
clientes dos outros advogados como se fossem clientes dele. O Evandro fazia por
amor ao debate", conta.
Ele compareceu ao escritório diariamente, até o final da vida. Dias antes da
queda, que aconteceu em 17 de setembro de 2002 e que acabou em sua morte, no
Aeroporto Santos Dumont, ele havia tomado posse como Conselheiro da República,
nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
Advogado do júri
Foi longe da toga que
Evandro Lins e Silva ficou conhecido do grande público, na defesa do corretor
de ações Raul Fernando do Amaral Street, o "Doca Street",
que matou sua namorada, Ângela Diniz, figurinha constante nas colunas sociais.
O advogado também se destacou no apoio ao movimento pelo afastamento do presidente
Fernando Collor de Melo.
O primeiro episódio
aconteceu em 1979, em Búzios. Argumentando legítima defesa putativa da honra,
não conquistou a absolvição de Doca, mas conseguiu com que ele fosse condenado
a um ano e cinco meses de prisão, com direito a sursis da pena. Na época,
entidades femininas caíram em cima do criminalista. Ele pediu ao júri, formado
por cinco homens e duas mulheres, que refletissem "até que ponto a
participação da vítima contribuiu, mais ou menos fortemente, para a deflagração
da tragédia". Técio escreveu toda a instrução do processo.
Mas, como faz questão de
ressaltar o neto mais velho de Evandro Lins e Silva, o também criminalista
Ranieri Mazine, hoje com 48 anos, ao contrário do que se pensa, a tese da
legítima defesa da honra foi usada, pela primeira vez, na defesa de uma mulher
que matou o marido, trinta anos antes. "Curiosamente, e há um erro
histórico aí, meu avô aplicou a tese pela primeira vez na defesa da dona
Zulmira Galvão Bueno, que matou um advogado muito conhecido aqui no Rio de
Janeiro, Stélio Galvão Bueno. Ela era maltratada pelo marido e descobriu que
era traída por ele", conta Mazine, muito calmo, relembrando o caso de
1950. A ré, ao contrário de Doca, teve uma sorte diversa: foi absolvida.
O neto, que morou a maior
parte da vida com o avô e que fala sobre ele como um homem "generoso
intelectualmente", conta que assistiu ao júri de Doca. Tinha, então,
15 anos. O julgamento durou quase 24 horas e, quando acabou, já de volta à casa
de Doca, em Cabo Frio, Evandro Lins e Silva quis tomar um banho de mar. "Meu
avô adorava praia. Gostava de pescar", lembra. Durante o julgamento,
anunciou seu canto do cisne. Todos acreditaram que aquela seria, de fato, sua
última aparição.
A história do assassinato
passional de Ângela Diniz, conhecida também como a Pantera de Minas, rendeu
livro, A defesa tem a palavra — O caso Doca Street e algumas lembranças. A
obra, que não era editada há dez anos anos, volta às prateleiras. O
relançamento acontece nesta quarta-feira (18/1), na Ordem dos Advogados do
Brasil do Rio de Janeiro, e coincide com o centenário de nascimento de Evandro
Lins e Silva. Além do livro, que retrata um dos casos que até hoje teve maior
repercussão na mídia, o criminalista escreveu outros oito.
O criminalista também foi
responsável, atendendo a pedidos da Ordem dos Advogados do Brasil — entidade da
qual foi conselheiro — e da Associação Brasileira de Imprensa, por elaborar a
notícia crime de responsabilidade contra o ex-presidente Collor. Ele atuou na
equipe de acusação, embora, como lembra Mazine, gostasse de dizer que estava,
na verdade, no papel de advogado do país. Subiu com ele, na tribuna, o também
advogado Fábio Konder Comparato, sobrinho de sua mulher, Maria Luisa Konder,
que ele chamava de Musa.
Com tantas atuações
memoráveis, Evandro Lins e Silva, em 2002, em entrevista ao documentário O
vício da liberdade, produzido por sua neta, Flávia Lins e Silva, contou que,
sim, tinha um júri do qual não esquecia. "Uma situação, em especial, me
atormenta até hoje: um médico teria matado um rapaz que fazia barulho na rua.
Acusei, o júri popular condenou e ele se matou na prisão. Eu estava convencido
de que ele era culpado, mas e se não fosse? E me arrependo de ter acusado. E se
a decisão tivesse sido mais resultado de minha eloquência que dos indícios
concretos? Penso nisso até hoje, 40 anos depois. Se um pecado cometi na
profissão, foram as poucas vezes em que acusei. Das defesas não me arrependo de
nenhuma", contou. O documentário foi exibido pelo canal GNT e pode ser
assistido aqui.
Ele não gostava de acusar.
Com longa trajetória no júri — foi ele que criou, por exemplo, os hoje
conhecidos memoriais que são distribuídos aos jurados antes da sessão — sua
última defesa foi justamente lá. Vinte e um anos depois, quebrou sua própria
promessa feita no julgamento de Doca Street.
Defendeu José Rainha
Júnior, líder dos sem terra, no Tribunal de Júri de Vitória. O homem era
acusado de homicídio de um fazendeiro e de um policial militar. No primeiro
julgamento, havia sido condenado a 26 anos de prisão. Nesse segundo veredicto,
o réu foi absolvido. Ao ser perguntado porque teria defendido o agricultor,
disse que "o julgamento de um homem que está lutando pela melhoria
das condições de vida de uma minoria deve merecer uma compreensão".
Dessa vez, seria mesmo seu último júri.
Na homenagem que aconteceu
na Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, o orador foi o ministro
Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, que por dois anos foi assessor
do gabinete de Evandro Lins e Silva. A proximidade entre os dois era tamanha
que o ministro batizou seu filho de Evandro Luís. A semelhança entre os dois
nomes é inegável.
As cinco leituras
As cinco leituras
Evandro Lins e Silva
também escreveu O salão dos passos perdidos: depoimento ao CPDOC. O livro traz
detalhes sobre o início da profissão, depois de pouco frequentar as aulas na
Faculdade Nacional de Direito, dos grandes criminalistas com quem conviveu e
dos tempos de jornalismo em uma época na qual bacharéis de Direito percorriam
tribunais em busca do quente da hora. Nisso, passou pelos Jornal de Notícias, A
Batalha, A Nação e O Jornal.
Como promessa de uma nova
geração de criminalistas, Evandro Lins e Silva incluiu, em sua lista, o nome de
Luís Guilherme Vieira. "Eu não sabia de nada. Quando vi que eu
estava no livro, chorei", conta ele. "Minha relação com o
Evandro foi de mestre e aprendiz. Ainda na década de 1980, quando eu comecei na
advocacia criminal", explica.
Do relacionamento com seu
mestre, o criminalista tirou alguns ensinamentos. "O Evandro
ensinava com muita tranquilidade. Ele era generoso pra isso", conta.
Uma dessas lições — que é repetida, inclusive, pelo neto Ranieri — é que todo
processo precisa ser lido, tim-tim por tim-tim, pelo menos cinco vezes. "Apesar
de não demonstrar, ele se envolvia muito nos casos. Vi um no qual ele chegou a
chorar no final", lembra Vieira.
Também veio dele outro
ensinamento. "Ele falava: 'Nunca vá à delegacia sem terno ou
gravata'. Essas coisas vão ficando", diz o advogado. O neto também
lembra que o avô lia, sempre, os autos originais. "E isso era
difícil de conseguir", conta, rindo, Mazine, que advogou com Evandro
Lins e Silva, mas começou como estagiário. A exigência tinha uma
justificativa. "Uma vez, ele encontrou no verso de uma página dos
autos originais uma informação que o ajudou na defesa. Atuar com ele é como
jogar no time do Pelé. Ele tinha talento para enxergar coisas que ninguém via
no processo. Ele sabia os detalhes de cor."
Luís Guilherme Vieira
conta do dia em que, durante a CPI do Sistema Financeiro, em 1996, seu cliente
se recusou a assinar um termo de compromisso e depor como testemunha e a
consequente prisão. O advogado foi então expulso do Senado. No mesmo dia,
Evandro Lins e Silva ligou para ele, indignado.
Ricardo Lira, de 79 anos,
advogado com quem Evandro Lins e Silva conviveu nos últimos de vida, conta
que "embora criminalista, o ministro aposentado expunha seus
argumentos, nos julgamentos, de forma semelhante a um civilista. A sustentação
era baseada na racionalidade".
Foi ele que, na
presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), concedeu a maior
distinção da entidade, a medalha Teixeira de Freitas. Além dela, em novembro de
2002, o criminalista recebeu o prêmio outorgado durante o congresso da Union
Ibero Americana de Colegios e Agrupaciones de Abogados (UIBA) realizado em
Lima, no Peru. Já a Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de São
Paulo (Acrimesp) concedeu-lhe o título de "O Criminalista do Século",
em 1999.
Ranieri Mazine conta que
botafoguense de coração, o avô, em um domingo, três dias antes de cair e
morrer, torceu entusiasmadamente pelo Santos, que disputava com o Corinthians a
final do Brasileirão. "O time do Santos era muito bom. Ele torcia
pro Robinho e pro Diego. A imagem do meu avô, empolgado, torcendo, me marcou
bastante."
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 18
de janeiro de 2012; Marília Scriboni é repórter da revista Consultor
Jurídico.
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